Após 4 anos de “hiato”, Demi Lovato lançou seu sétimo álbum de estúdio: “Dancing With The Devil… The Art of Starting Over”. Esse período não foi uma pausa totalmente proposital, muita coisa aconteceu. Mas com tantos percalços no caminho, ficaria o enigma de o que a cantora traria em seu material.
Uma coisa era clara: Lovato estaria cautelosa em voltar a mergulhar em um projeto tão íntimo e elaborado que é um disco. E então nos proporcionava alguns lançamentos desconexos. E podemos dizer que essa cautela foi necessária e que é a chave para o maior acerto de toda sua carreira.
“Dancing With The Devil… The Art of Starting Over” traz consigo uma sonoridade extremamente lapidada, coesa e claramente fruto de um trabalho muito minucioso
Não que o tempo seja sinônimo de qualidade, mas aqui é. Com suas 19 faixas, não é um álbum arrastado. Praticamente todas foram estrategicamente colocadas e deixam evidente sua necessidade de estar ali.
Apesar de tratar de temas recorrentes em sua discografia e vida pública, há uma diferença que chega a ser discrepante: uma Demi Lovato absurdamente mais madura e que não busca a perfeição. Isso é aplicado tanto em letras que mergulham em todos os seus dramas recentes sem parecer apelativo, quanto na ausência da “caça a um hit”.
Ao contrário de seus dois discos antecessores, “Confident” (2015) e “Tell Me You Love Me” (2017), aqui a artista não nos oferece hits óbvios e com o único desejo de fazer sucesso. Demi parece focar no que importa: sua história, mensagens e o espírito artístico.
E isso não quer dizer que o álbum é despretensioso. Temos uma perspicaz dualidade desde o nome do projeto, que faz parecer que estamos ouvindo dois trabalhos à parte, mas complementares.
O primeiro disco, que seria o “lado Dancing With The Devil” é melancólico, teatral e dramático. Não é à toa que trata do lado obscuro da obra, com suas experiências relacionadas a sentimentos depressivos e de quase morte, por conta de uma overdose em 2018. ‘Anyone’, que já era conhecida há um bom tempo, é a primeira faixa e é um grito de ajuda. É uma balada poderosa e que nos insere em uma absurda melancolia.
Já a poderosa ‘Dancing With The Devil’ tem uma atitude Christina Aguilera em sua melodia e vocal. É um dos pontos altos de todo o álbum, e que é um relato de Demi sobre sua luta contra o vício e sobre quase morrer. Seu potencial vocal reveza com doces notas de pianos e nos envolve pela sua carga emocional, sem soar apelativa.
Como um “encerramento” desta (curta) parte, a balada ‘ICU (Madison’s Lullabye)’ refere-se ao dia que acordou de sua overdose e não conseguia enxergar sua irmã. Com direito a um final falado por Madison, a canção mostra o quanto Demi elevou o nível de suas composições.
O foco do disco não é lamentar ou “suplicar incessantemente o perdão”, e sim contar a história de uma jornada tortuosa rumo a ser uma pessoa melhor
A rápida ‘Intro’ resume cirurgicamente a primeira parte para ser uma perfeita transição entre “Dancing With The Devil” e “The Art Of Starting Over”, significando duas partes muito diferentes da vida de Demi. E a partir deste momento temos uma virada lírica e sonora. Conhecemos aqui uma nova Demi, com uma sonoridade deliciosamente fresca e renovada, que parece estar a quilômetros de distância de seus últimos trabalhos, e estar tendendo mais para o seu início de carreira.
Digamos que Lovato está mais para um espírito pop-rock, de trabalhos como “Don’t Forget” (2008) e “Here We Go Again” (2009) com guitarras calmas, baterias marcadas e até mesmo uma grande pincelada de influências country. É como se a artista transcendesse para evoluir sonoramente, criando um trabalho robusto, e que seu conteúdo e coesão falam por si.
A “segunda faixa-título”, ‘The Art of Starting Over’, ‘Lonely People’, ‘Melon Cake’, ‘Carefully’, ‘The Kind of Lover I Am’, ‘Easy’ (feat. Noah Cyrus), ‘15 Minutes’ e ‘What Other People Say’ (feat. Sam Fischer) são perfeitos exemplos disso. São músicas poderosas, que realmente fazem parte de um conjunto, transmitem atitude e poderiam facilmente embalar desde uma volta de carro em uma estrada, à ficar no quarto trancado ouvindo. Exceto ‘15 Minutes’, que não chega a ser um filler, porém, marca um dos poucos momentos mornos.
Em boa parte das letras, Lovato cita sua vida amorosa e principalmente o rompimento com seu ex-noivo. Compondo a maior partes das canções, podemos ver o quanto o olhar da artista está no projeto e que suas letras adquiriram altos níveis de composições e uma riqueza de detalhes no enredo.
Um exemplo é ‘Melon Cake’, que trata sobre o controle que sua antiga equipe de gerenciamento fazia por conta de seus distúrbios alimentares: não a deixavam comer o que queria, e a faziam comer um “bolo” que nada mais era do que uma melancia em formato de bolo, com cobertura de chantilly sem gordura. Inclusive esse não só é um dos maiores momentos do disco, como também de sua carreira. Um pop retrô e contagiante.
Também citando essa profundidade, a envolvente ‘California Sober’ fala em maiores detalhes sobre sua recuperação e o método que está descobrindo para reduzir danos e controlar seus vícios. Em sua instrumental, soa como um clássico do início dos anos 2000.
E colocando sua concisão à prova, alguns pontos chegam a trazer propostas que fugiriam da trilha, como a tão aguardada e poderosa ‘Met Him Last Night’, um feat. com Ariana Grande. E junto com ‘My Girlfriends Are My Boyfriend’ com a rapper Sawetiee, marcam os momentos mais comerciais e com um pé no “urban”, mas que surpreendentemente se encaixaram sem destoar do resto.
O maior momento do disco é na verdade um cover. A icônica ‘Mad World’ (1982) da banda Tears for Fears, que já foi regravada na voz de milhares de intérpretes, agora ganha uma versão na voz de Lovato. Nesta versão, que se aproxima mais à dramaticidade e melancolia da roupagem que foi para o filme “Donnie Darko” (2001), o sentimento de “voyeurismo” pela vida parece se conectar com todo conceito do álbum e eleva os níveis.
A animada balada de violão ‘Butterfly’ é intrigante, e em conjunto com a introspectiva ‘Good Place’ formam um final perfeito. Esta última soa como um resumo de tudo o que foi abordado. É uma balada de violão sem segredos e intimista, que ganha força ao decorrer de sua duração, e que é confortante.
Em sua sonoridade, podemos dizer que a artista está em seu melhor momento
Com momentos altos e baixos, faixas animadas e outras introspectivas, e uma levada do country ao mid-tempo, o que chega até mesmo espantar é o zelo por criar um disco extremamente coeso. A impressão que “Dancing With The Devil… The Art of Starting Over” passo no final é de leveza. Apesar de uma profunda imersão em algumas letras trágicas, Demi Lovato não é mais a “menina” de ‘Skyscraper’. E toda essa maturidade ressoa em um conteúdo lírico ponderado e na medida certa. Um perfeito “recomeço” para Demi Lovato.