Kevin Parker marcou o retorno do Tame Impala em julho com o single “End Of Summer”. Apesar do título, o verão do hemisfério norte ainda estava só começando. A faixa foi a primeira de mais dois lançamentos, “Loser” e “Dracula”. Os três singles compõem o cenário completo de Deadbeat, sexto disco de estúdio do Tame Impala, que floresce, pelo menos no hemisfério sul, nesta primavera.
Um lustro se passou desde o lançamento de The Slow Rush (2020), até então álbum mais recente do projeto. A percepção temporal é impactante: como pode um disco ter reverberado tanto ao ponto de parecer que saiu há, no máximo, dois anos? Nesse ínterim, Parker não ficou parado. O australiano ganhou seu primeiro Grammy, na categoria de Melhor Gravação Dance/Eletrônica, pela colaboração com o duo Justice em “Neverender”. Além disso, participou de várias trilhas sonoras de filmes: gravou “Journey to the Real World” para Barbie, “Wings of Time” para Dungeons & Dragons: Honor Among Thieves, um remix de “Edge of Reality” para Elvis, e a parceria com Diana Ross em “Turn Up the Sunshine” para Minions: The Rise of Gru.
Indo além, o produtor também colaborou em diversas outras faixas nos últimos anos. O cérebro por trás do Tame Impala gravou “No More Lies” com Thundercat, “One Night/All Night” com Justice, “New Gold” com Gorillaz, e “Call My Phone Thinking I’m Doing Nothing Better” com The Streets. Isso sem contar os inúmeros remixes que fez para artistas como 070 Shake, Crowded House e o próprio dueto Justice, além de ter comandado a produção do álbum Radical Optimism, da superstar Dua Lipa.
Deadbeat
Depois de anos explorando colaborações e sonoridades alheias, Parker retorna à essência do Tame Impala em um disco que carrega tanto as marcas de suas experiências externas quanto um reencontro com suas próprias origens. O trabalho é profundamente inspirado pela cultura bush doof e pela cena rave do oeste da Austrália. Imerso nessas sonoridades, Parker trabalhou no álbum em sua cidade natal, Fremantle, e em seu estúdio em Injidup, também na Austrália.
Beber da água da cena rave do oeste australiano reconectou o Tame Impala à psicodelia catártica que marcou as origens do projeto. A sonoridade de Deadbeat é “igual, mas diferente”, com Parker explorando BPMs mais lentos e inserindo mais vocais que, por sua vez, passam a ter um caráter mais volátil. Se a sinuosidade não for desfrutada na hora, será preciso esperar pela próxima onda para mergulhar.
Após três singles, todos acompanhados de videoclipes, a chegada de Deadbeat ao mundo foi acompanhada de um clipe de “My Old Ways”, primeira track do álbum. A peça mostra o processo de concretizar esse trabalho abstrato: estúdio, casa, rua, terraço de prédios e onde mais for possível trabalhar observando os mundos ao redor.
O disco está longe de ser uma “batida morta”, como o título propõe. Há uma certa vitalidade em retornar, após cinco anos de pausa de Tame Impala (mas não de Kevin Parker), com um novo som, novas propostas, novas destrezas. Não se trata exatamente de um renascimento, mas um foco em outras áreas da vida. Novas bagagens, paternidade, fraturas na bacia, campos inexplorados – tudo isso adiciona novas cores às lentes da psicodelia de Parker.
As doze composições de Deadbeat formam uma narrativa quase cronológica, acompanhando um personagem em colapso emocional — da recaída até a redenção incompleta. Um homem cheio de desculpas que sucumbe às suas tentações e se sente impotente em “My Old Way”, e que em “No Reply” usa essas justificativas para reforçar sua miséria e dizer por que esteve ausente, em uma espécie de pedido de desculpas. “Dracula” é uma fantasiazinha, uma ilusão brilhante — e dançante — guiada em versos ébrios.
A manhã do dia seguinte chega com “Loser”: ressaca moral e a tentativa de entender o que aconteceu. Em seguida, “Oblivion” é a tentativa de arrumar a bagunça feita, enquanto “Not My World” apresenta o pensamento do “só por hoje” como o método de superar os erros do passado. “Piece Of Heaven”, por sua vez, é quando a personagem encontra certa estabilidade e percebe o divino na bagunça que, para o outro, é desleixo. Falar é fácil e algumas promessas envelhecem, e é nessa vibe que o eu lírico deseja saber como o outro se sente em “Obsolete”. A mágica acontece em “Ethereal Connection”, em uma sonoridade semelhante a “Rush”, de Troye Sivan. Nesse flutuar, ela é o elemento a mais na narrativa de Deadbeat: a peça mais longa do álbum é excessiva em componentes — o que, de forma alguma, é um demérito. Aliás, é como se todo o disco coubesse na faixa, não necessariamente em ordem. “Ethereal Connection” é a “synthese” de Deadbeat.
Em seguida, com “See You On Monday (You’re Lost)”, toda a confusão mental entra em cena mais uma vez. Os versos são desconexos, embora permaneçam nesse “vai, não vai” construído na jornada de Deadbeat. Embora não seja a faixa final, “Afterthought” é o ultimato: o que é necessário para mudar o jogo emocional entre as personagens? O desfecho fica aberto com “End Of Summer”, que atinge certa completude com a melodia, mas não com a lírica. É com essa track que a estratégia de Parker em iniciar seu sexto trabalho de estúdio com “My Old Ways” atinge a completude.
Essa dúzia de faixas, ouvida sequencialmente — como todo disco deveria ser escutado —, mantém um nível coeso e estável. Mesmo as texturas inexploradas e os grooves inéditos à sonoridade do Tame Impala não soam estranhos, justamente por serem experimentados com cautela. Para quem acompanha o Tame Impala desde o início, é familiar e surpreendente ao mesmo tempo; para novos ouvintes, é uma imersão irresistível em um universo sonoro próprio, cheio de detalhes que pedem para ser explorados em vários e vários plays.
“Outro álbum que quase me matou. Foram 2 anos de suor, lágrimas e autoabandono – mas eu não faria de outro jeito. Eu nunca entregaria algo que não tivesse exigido tudo de mim. São agradecimentos demais pra caber aqui, mas vocês sabem quem são. Espero que vocês curtam”, resume Kevin Parker sobre o Deadbeat.
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Aproveitando o lançamento de Deadbeat, (e talvez como estratégia de divulgação), o Tame Impala foi o convidado da sessão mais recente do NPR Tiny Desk (que agora tem uma versão brasileira). O episódio foi ao ar juntamente do álbum. Das novidades, “Loser” e “Dracula” integram a setlist, ao lado de “Borderline”, do disco Slow Rush, e “New Person, Same Old Mistakes”, do prestigiado Currents.
O tempo — mesmo lento como um beat de 90 BPM — ainda é um bom aliado para quem sabe transformar elucidação em som.