O primeiro Primavera Sound São Paulo conseguiu superar muitas expectativas

O festival espanhol estreou em São Paulo no último final de semana e o escutai esteve lá

Com uma curadoria exemplar, que priorizou o fator artístico na complexa equação que é oferecer ao público experiências e identidades singulares, o festival espanhol Primavera Sound fez a sua estreia em São Paulo de maneira incisiva no último final de semana (5 e 6 de novembro).

A demanda por artistas que não ocupam os topos das paradas ultra populares, mas que reúnem multidões viscerais entorno dos seus trabalhos, mostrou que as perspectivas para o mercado nacional de festivais seguem amplas, embora o setor ainda sofra com os reflexos da crise econômica vigente — produzir e circular shows no Brasil está caro.

Talvez esse tenha sido o maior fator para definir o evento como a mais esporádica ação que deva acontecer mais e mais vezes. Unir esses públicos e cantores em um só lugar coloca no mapa como é inigualável estar e se sentir bem consigo mesmo dentro de um espaço que acolhe — afinal, toda e qualquer música toca diferente nos vários corações espalhados pela cidade.

Contudo, para um festival com o propósito de envolver o local em que acontece entorno da sua experiência, o maior erro do Primavera Sound foi justamente não saber gerenciar os desafios logísticos que São Paulo oferece. Mesmo assim, o saldo final é positivo, refletindo um futuro próspero para o festival, que também ganha edições em Buenos Aires (Argentina) e Santiago (Chile) nos próximos dias.

Primavera Sound São Paulo / Créditos: Pridia (@pridiabr)

A seguir, confira como foi a experiência da primeira edição do Primavera Sound São Paulo para além dos shows.

Primavera na Cidade e o pré-festival

A maratona musical no Distrito Anhembi foi antecedida pelo Primavera na Cidade, série de shows em diferentes espaços da cidade entre os dias 31 de outubro e 04 de novembro, com o objetivo de introduzir o festival ao público e servir como termômetro para os organizadores, que puderam conhecer melhor o perfil da sua audiência, assim como engajar o storytelling entorno do marca e incentivar quem deixou para comprar ingressos na última hora.

A ótima ideia de uma semana de shows tornou-se não tão atraente para alguns. Conforme anunciado, um código que daria acessos aos ingressos dos sideshows seria enviado por e-mail, mas muitas pessoas sequer receberam a mensagem. Houve ainda quem comprou mais de um ingresso e recebeu apenas um código, gerando uma onda de frustrações. Também foram disponibilizados ingressos à parte para essas diferentes datas, com preços entre R$ 120 e R$ 280, valores nada atraentes para quem já tinha pago pelo pacote completo.

A proposta de espalhar apresentações pela cidade antes da programação principal definitivamente não vingou como poderia, acarretando um público mediano ao longo da semana.

Primavera Sound São Paulo / Créditos: Pridia (@pridiabr)

Primavera Sound no Distrito Anhembi

Desde que foi anunciado, a localização era vista com certa desconfiança pelo público acostumado a grandes eventos, que já sabia que chegar e sair do festival seria uma questão — menor do que a jornada que é ir ao Lollapalooza, contudo.

Localizado no bairro de Santana, o Distrito Anhembi é um complexo cultural e comercial que reúne uma série de espaços entorno do sambódromo paulistano, incluindo hotel e auditório de capacidade considerável. Na prática, a escolha de endereço se mostrou pertinente mesmo com ajustes a serem considerados. 

Para chegar, partindo da estação de metrô mais próxima (Portuguesa-Tietê), o público deveria escolher entre a linha de ônibus criada exclusivamente para o evento e opções de transporte por aplicativo, ambas rápidas e funcionais ao longo do dia, mas na hora de ir embora, a locomoção simultânea de 55 mil pessoas (público médio em cada dia do festival) quase virou questão de segurança pública.

Isso gera um problema três vezes maior considerando que o metrô abre apenas às 4h40 (sendo que a programação foi até as 2h da madrugada de uma segunda-feira). Ou seja, quem optou por esse método de viagem, tinha que esperar do lado de fora. Não houve rondas policiais e o mínimo esforço para estender os horários. Esse é um ponto extremamente negativo.

Filas quilométricas foram formadas por quem desejava pegar o ônibus de volta para o metrô, enquanto a espera por táxis e similares chegava a horas, com valores inflacionados pela alta demanda — aparentemente, nenhuma ação foi firmada com empresas de transporte por aplicativo. A situação criou uma revolta generalizada em quem só queria ir embora e esperava um pouco mais de cuidado (e logo, segurança) nesse quesito.

Outra alternativa era ir e voltar de carro, algo pouco coerente para um evento que preza pela sustentabilidade. A diária do estacionamento, localizado dentro do Distrito Anhembi, custava R$ 55 e deveria ser paga na hora.

Um dia antes do início, em coletiva de imprensa, a organização do festival e a Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo informaram que o metrô funcionaria apenas meia hora além do horário convencional, encerrando por volta de 1h30 da manhã, uma hora antes das últimas atrações deixarem os palcos do Primavera Sound. A impressão é de que a parceria chegou de última hora, sem grandes esforços entre as partes, sendo incentivada apenas pelo grande apelo do público por opções de transporte.

https://twitter.com/escutai/status/1588169159674036229

Quem perdeu foi o município, que poderia se engajar mais na proposta e fortalecer ainda mais sua imagem como destino turístico e cultural. Mesmo assim, nomes que figuraram no line-up do festival foram vistos andando de metrô (Charli XCX na Linha Azul), frequentando clubes icônicos da cidade (Boy Harsher no Madame, e Jessie Ware na Aloka) e passeando com os fãs (Arca na Av. Paulista e Rua Augusta), mostrando que a cidade também é parte da experiência do festival.

Distrito Anhembi se mostrou funcional no caminho entre palcos, alimentação e banheiros

Por outro lado, uma vez dentro do Distrito Anhembi, o público do Primavera Sound encontrou uma das melhores estruturas já oferecidas por eventos do mesmo porte. Em um espaço amplo e plano, caminhar e ter acesso aos diferentes serviços disponíveis era fácil. A distribuição de palcos, ativações, alimentação e banheiros merece um enorme destaque pela funcionalidade.

Nossa equipe não encarou mais de cinco minutos de fila para comer, beber, recarregar a pulseira ou ir ao banheiro nos dois dias, embora algumas pessoas tenham relatado que esperaram bastante tempo para ter acesso a algum dos serviços. Com um pouco de paciência e alguns passos a mais, era possível encontrar bares e banheiros quase vazios.

É claro que nem tudo foi fácil. No primeiro dia, ao final da tarde, uma multidão ainda pouco familiarizada com o espaço obrigou a organização do festival a intervir, limitando acessos e colocando um pequeno exército de orientadores de público em ação — outro grande ponto positivo, muita sinalização verbal. Mais tarde, o trânsito seguia tranquilo e era possível se locomover com agilidade entre os extremos do evento (palcos Becks e Elo).

Um dos grandes acertos foi a instalação do palco Elo dentro do sambódromo, possibilitando que o público assistisse aos shows da arquibancada, com banheiros e bares muito próximos. Na contramão, o palco Beck’s, o maior do evento, teve a visibilidade prejudicada por árvores e foi alvo de comentários negativos desde antes do festival acontecer. Acostumado a ter visão ampla das apresentações, o público brasileiro estranhou a escolha do local, que poderia abrigar com perfeição um palco eletrônico.

Primavera Sound São Paulo / Créditos: Pridia (@pridiabr)

Embora amplo, o espaço destinado para palco Beck’s não funcionou como o esperado. Durante as apresentações de Arctic Monkeys e Travis Scott, por exemplo, era impossível romper a barreira de gente formada após o portal de acesso ao setor, embora nas laterais houvesse grandes espaços vazios, como os orientadores de público indicavam aos berros durante os momentos mais críticos. Em ambos os dias, na lateral direita, em frente às áreas dos patrocinadores e para pessoas com deficiência, havia espaço de sobra para dançar, mas a circulação era praticamente impossível e não havia bares e banheiros, sendo preciso aguardar até o final dos shows para sair dali com conforto e segurança. 

Experiência de público com marcas e ativações

Diferente dos grandes festivais publicitários, onde os stands de patrocinadores competem com os shows pela atenção do público, as ativações de marca eram poucas e discretas no Primavera Sound. Concentradas na principal área de convivência do evento, entre os palcos Bits e Becks, marcas como Vans, Beefeater e Schweppes ofereciam brindes singelos àqueles que topassem realizar cadastros ou encarar longas filas. Destaque para a Ice Breakers, que caiu nas graças do público ao distribuir sem moderação suas pastilhas saborizadas.

Ao contrário do esperado, comer e beber por lá foi acessível. Com preços não muito diferentes do já usual. Era possível se alimentar com facilidade nos diferentes pontos espalhados pelo Distrito Anhembi, com opções a partir de R$ 15 (espetinho) e poucas filas. Outras duas áreas de alimentação, próximas dos palcos Bits e Elo, ofereciam ainda opções mais elaboradas, diversas e preparadas por estabelecimentos renomados da cidade.

Outro grande acerto foram as estações de água potável, onde o público podia se hidratar de graça. Ainda que os bebedouros estivessem “escondidos” nos acessos dos palcos Bits e Elo, o gesto caiu no gosto do público, com os bonitos copos reutilizáveis distribuídos pelo evento. Esperamos que a iniciativa seja mantida e ampliada nas próximas edições, servindo de exemplo também para outros festivais. Oferecer água gratuitamente é uma medida de segurança em eventos de longa duração.

Dois pontos ofereciam produtos oficiais do festival e dos artistas, além de que era possível comprar itens de tabacaria em um dos stands.

Na hora de curtir o show, literalmente, vale destacar a pontualidade entre as apresentações, (mesmo com alguns leves atrasos), trazendo segurança para quem desejava planejar sua experiência ao longo do dia. Além disso, a questão técnica merece aplausos fortes. Em nenhum show (pelo menos nos quais nossa equipe foi) o som sofreu algum tipo de falha, muito pelo contrário, o volume era absurdo de imponente. Segundo relatos, o grupo CHAI passou por breves problemas técnicos, contornados rapidamente.

E quem queria aproveitar sem segredo, ir aos sets de DJ’s que aconteciam no palco Bits era uma passagem obrigatória. O local era insano e ainda trazia artistas ótimos; que sabiam conduzir o que oferecer para o festival. Passar apenas em frente do espaço era tentador — e um breve caminho entre um palco e outro.

Primavera Sound apresentou um line-up diverso, curadoria assertiva e destaque para acessibilidade

Com um dos line-ups mais elogiados dos últimos tempos, o Primavera Sound São Paulo fez sua estreia reunindo mais de 90 artistas de todos os continentes, como mostrou o perfil 300Noise. Desse total, mais da metade eram brasileiros (52%) e não brancos (54%). Pessoas trans representavam 6% dos nomes escalados, enquanto homens e mulheres cis apareceram em proporções muito próximas (48% e 46% respectivamente). Números esses que até um certo tempo pareciam, infelizmente, nunca se tornarem realidade.

Essa preocupação em promover uma política de diversidade real entre as atrações foi reforçada pelo lema “Nobody is Normal” (Ninguém é Normal), projetado nos telões para demarcar a intenção do Primavera Sound em ser um espaço livre de violência e discriminação. E esse foi o clima que prevaleceu ao longo dos dois dias do festival, com pessoas absolutamente diferentes convivendo tranquilamente entorno da música.

Áreas exclusivas para PCDs (pessoas com deficiência) estavam presentes nos quatro palcos, garantindo visibilidade e fácil acesso, além de conforto e praticidade para entrar e sair do evento através de um portão exclusivo e rampas espalhadas pelo local. No palco Becks, as transmissões dos shows contavam com tradução simultânea em LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) e audiodescrição. Também era possível solicitar o empréstimo de kits para transformar cadeiras de roda em triciclos elétricos, garantindo maior conforto na circulação.

A escolha das atrações acendeu as expectativas do público para próximas edições, assim como os palcos lotados durante apresentações que prometiam o oposto reforçaram a importância de um festival como o Primavera Sound, que de fato valoriza música e artistas dentro de sua concepção.

O método encontrado para propor entretenimento musical de primeira foi executado no evento de uma maneira que apenas um sentimento passe no peito de quem viveu esses dois dias: felicidade.

Foi absurdo de lindo acompanhar e gritar em shows que muitos pensavam nunca ser possível assistir no Brasil. Toda a conta recebe outro enorme número para somar quando colocamos no radar a sensação de admiração que girou ao redor dessa experiência.

Se seguir todas essas margens e corrigir os erros (que, honestamente, não foram tantos), teremos um dos melhores festivais de música dentro do estado de São Paulo. O que ficou após o fim do domingo de muita agitação e momentos elétricos foi a esperança e o desejo por sentir a nostalgia e o futuro em único lugar de novo.

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