Housewife, Beauty Queen, Homewrecker ou Idle Teen? O ano era 2012 e Marina Diamandis (conhecida na época como Marina and The Diamonds) lançou o seu segundo álbum de estúdio denominado “Electra Heart”. Trazendo consigo ‘Bubblegum Bitch’, que viralizou recentemente no Tik Tok, ‘How To Be a Heartbreaker’ e ‘Primadonna’, a obra traz a icônica Electra Heart com seu coração na bochecha, alter ego da cantora, como a protagonista de uma história profunda, sombria e obscura em busca de uma identidade.
Justamente a rainha da “não identidade”, Electra inicia tanto o álbum, como a série de 11 vídeos do projeto, “ELECTRA HEART: THE ARCHETYPES”, como uma jovem que vive uma vida vazia, em busca de preencher a si mesma com aparências e um mundo de superficialidades. Com camadas e mais camadas de arte, críticas ao famoso sonho americano e ao papel da mulher na sociedade, Electra traz até mesmo o tema saúde mental em destaque.
“Electra Heart é a garota que você encontra no supermercado usando um casaco de pele falsa e óculos escuros, escolhendo vagarosamente o abacate. O carrinho dela está cheio de champanhe e morangos e ela nem se importa que você esteja olhando para ela do corredor da padaria. Ela está angustiada, e você pode dizer que sua conversa ao telefone não terminou bem pelo jeito que ela dramaticamente deixou cair o telefone e enxugou uma lágrima solitária de sua bochecha. A mesma bochecha que tem um coração desenhado com delineador”.
De acordo com a própria Marina
O auge da Era Tumblr
Vivendo o auge da rede social, Marina usou da própria estética da rede social, alternativa, emotiva e cercada de influências “cool”. Então, era o tempo em que as sadgirls e sadboys criavam um mundo visual ora divertido, ora melancólico. E foi utilizando isso ao seu favor que criando um Tumblr denominado “The Archetypes” foi possível ver a construção concisa e bem amarrada da futura quebradora de corações. E inclusive foi o que impulsionou mais ainda para a consagração da personagem.
Analisar a trajetória de Electra é no mínimo intrigante
Em um lado referências à mitologia grega, desde o seu próprio nome (uma alusão ao Complexo de Electra, relacionado à mitologia assim como Complexo de Édipo) e as origens gregas que Marina tanto idolatra. Do outro, o cinema hollywoodiano dos anos 30 a 70, em filmes como “Valley of the Dolls” (1967), cujo título inspirou uma das faixas do álbum.
Electra é uma versão de tudo o que Marina não é, e consequentemente a personagem propõe um apelo da cantora pop loira idealizada pela mídia, com aquele tempero irônico e debochado do sonho americano pela perspectiva de uma galesa. Há vários mistérios de como este alter ego conseguiu se tornar tão icônico. Um deles chega mais a ser uma curiosidade revelada mais tarde: a cantora queria basicamente ser outra pessoa!
Por trás do mix de influências em mulheres canonizadas pela fama, como Marilyn Monroe, Madonna e Britney Spears, Marina se debruça em vertentes psicanalíticas para contar a história de sua invenção. Então somos apresentados aos arquétipos, mais especificamente 4 deles, baseados nas mulheres do cinema americano e em todo o glamour da vida perfeita.
O que são os arquétipos?
De acordo com o Dicionário Michaelis, arquétipo é um conceito criado por Carl Gustav Jung (1875-1961). São “protótipos, imagens primordiais do inconsciente coletivo que são comuns a toda a humanidade desde os tempos mais remotos, sendo encontrados em muitas formas e evidenciáveis particularmente nos contos de fadas, nos mitos e lendas de um povo, na religião, na arte ou no imaginário individual”. Se alguém falar as palavras “ladrão” e “herói” já temos um conceito em mente. Por exemplo, a palavra “bondade” pode remeter à imagem de Madre Teresa de Calcutá.
Marina pega então 4 referências: Housewife (a dona de casa americana), Beauty Queen (a rainha da beleza dos filmes hollywoodianos), Homewrecker (a famosa e temida quebradora de lares) e a Idle Teen (aquela adolescente vagal das séries).
Idle Teen / Teen Idles: adolescente vagal ou ídolo adolescente?
É difícil falar exatamente quais músicas do disco são para cada uma delas, mas há as que sem dúvidas são desse arquétipo. Músicas como ‘Teen Idle’, ‘Bubblegum Bitch’, ‘Living Dead’ e ‘Radioactive’ refletem o estereótipo daquela adolescente americana fútil dos filmes e séries. Nada faz da vida além de querer ser perfeita, brincar com o sentimento dos outros, ter um amor insano, ser a popular do colégio e se frustrar. Geralmente aparece em músicas mais “teen” e melancólicas. O nome deste arquétipo é justamente um jogo de palavras entre “idle” (ociosa) e “idol” de ídolo. Electra foi uma adolescente vagal e queria ser um ídolo adolescente.
Este com certeza é o arquétipo mais dramático, conturbado e que nos coloca para refletir as referências que a sociedade nos impõe desde cedo. Electra queria tanto ser esse ídolo adolescente, mas viu que por conta disso nunca viveu sua própria vida e se “sente morta” por dentro.
“Os anos perdidos, a juventude perdida. As belas mentiras, a verdade feia. E chegou o dia em que morri, apenas para descobrir que ganhei vida”
Beauty Queen / Primadonna: a rainha da beleza
Após sua adolescência com altas doses de influências do cinema americano, Electra só queria ser idolatrada, bela e ter o mundo para si, sua razão de ser é viver para a adoração. Electra, nas canções ‘Primadonna’ e ‘The State of Dreaming’ continua mais fútil do que nunca, mas faz de tudo para ter a vida perfeita. “Rainha da beleza em uma tela prateada. Vivendo a vida como se estivesse em um sonho. Eu sei que tenho um grande ego, mas realmente não sei por que isso é grande coisa”.
Housewife / Su-barbie-A: a dona de casa americana
Em mais um jogo de palavras a “Barbie do Subúrbio” consegue o tão sonhado casamento e viver sua vida perfeita! Só que não! Se a rainha da beleza vivia em um mundo de aparências, Electra Heart se casou, teve a “melhor realização para uma mulher” dos anos 50, mas vive um casamento infeliz e amargurado. Cheio de ciúmes, traições e aparências, ‘Lies’, ‘Starring Role’ e ‘Valley Of The Dolls’ trazem toda melancolia que os filmes não a contaram que um casamento podia conter.
“Você só me toca no escuro. Só se estivermos bebendo você pode ver minha faísca. E só à noite você poderia se entregar a mim. Porque a noite é sua mulher, e ela vai te libertar”
Homewrecker: a quebradora de lares
Depois de um casamento frustrado, Electra se torna uma quebradora de lares: tanto o dos outros, quanto do seu próprio, já que até o seu casamento foi destruído. Com o famoso “sangue no olho”, Heart agora é fria, sem sentimentos e se diverte fazendo os outros sofrerem. Não o suficiente, ela ensina outras pessoas a serem iguais a ela nas famosas regras de ‘How To Be a Heartbreaker’ e na “trágica felicidade” de ‘Homewrecker’. Essa primeira, inclusive, que consagrou o alter-ego e representa um dos hits da carreira de Marina, principalmente pela identificação de que nenhum de nós quer ser trouxa e sofrer por amor.
“Regra número um: é que você tem que se divertir. Mas, baby, quando você terminar você tem que ser o primeiro a correr.”
Há canções difíceis de acertar com propriedade para qual arquétipo seria, faixas como ‘Sex Yeah’ e ‘Hyprocrates’, por exemplo, mostram o olhar crítico de Marina em como a mulher sempre foi vista na sociedade como um objeto. Apesar de cair na lábia do sonho americano, Electra se incomodava da televisão a dizer como uma popstar deveria ser e achava contraditório que: a mulher precisa mostrar sensualidade e seu corpo, mas se mostrar é dita como uma “vagabunda”. Ela se mostra cansada de dizerem a ela quem ela deve ser e como se vestir.
O maior sucesso comercial da carreira de Marina
Como já falado aqui, a estética Tumblr foi um dos motes para a identificação dos adolescentes de 2012, desde seu coração na bochecha. Marina vinha de seu primeiro disco, e bem sucedido, “The Family Jewels”, mas é em “Electra Heart” que o maior surto de criatividade de sua carreira apareceu.
Criando toda essa aura icônica de uma personagem de fácil identificação, Electra de certa forma “acolheu” jovens que se sentiam vazios, sem identidade e que não viviam a vida louca que os seriados americanos diziam que um adolescente vivia. Além de proporcionar momentos de “não serei mais trouxa” e de abraçar sonoramente aqueles que “não se sentiam ninguém, sem identidade alguma”. Uma fórmula tão completa e complexa, desde a sua estética e desdobramentos, que de certa forma serviu de background futuramente para artistas como Melanie Martinez com sua Cry Baby.
O flerte com o “pop farofa”
Outro fator essencial, que representa grande parte de seu sucesso, é sua produção totalmente voltada ao eletropop comercial da época. Justamente o motivo de Marina querer que esse fosse um projeto à parte de sua persona artística, é um álbum muito distante da sonoridade de seu primeiro disco, e sabemos que isso realmente divide o público: metade enaltece a versatilidade do artista e metade se sente “enganado”.
Um ponto curioso sobre as produções é que, geralmente, Marina é contida, prefere escrever sozinha praticamente todas suas músicas e trabalhar apenas com um produtor. Neste, foram chamados vários produtores de hits da época, como Max Martin e Stargate. E mesmo com todo o pop considerado “farofa”, suas letras conseguiram ficar cada vez mais profundas. A definição de “rebolando com uma mão na cintura e a outra na consciência”.
Além de ser um instrumento de ironia usar a música comercial para criticar o modelo americano, foi um modo da artista realmente se lançar para o mercado mundial com as músicas que faziam sucesso naquele período. Não surpreende que vemos faixas como ‘How To Be a Heartbreaker’ e ‘Primadonna’ tocando até hoje em baladas e playlists de pop.
Electra Heart, are you faux? Real?
Sem dúvidas o alter ego de Marina é um case de sucesso em diversos aspectos, principalmente quando falamos de conceito, concisão e coesão. Não é à toa que muitos Trabalhos de Conclusão de Curso surgem a estudando em aspectos psicológicos, líricos e audiovisuais. Até porque sua narrativa de um quase “álbum visual” possui uma construção impecável.
Em um período de 2 anos, pudemos ver seu nascimento, vida e a morte após apagar o coração de sua bochecha. Assim como outros grandes alter egos da indústria da música, foi mais do que apenas um disco. Até porque a atuação era tanta que a própria fisionomia de Marina mudava para dar lugar à sua criação.
Electra Heart é uma personagem atemporal que vai além do conceito de transmídia. Ela está no seu streaming, no YouTube, podemos ver claras referências de filmes históricos, livros best-sellers e figuras icônicas como Marilyn Monroe e Madonna. Ela traz à tona sentimentos fúteis ou profundos, e arquétipos que estão no imaginário e senso comum.