Ivete Sangalo e Ludmilla cancelam turnês no Brasil e escancaram crise no setor

Com argumentos entre “desacordos com a produtora” e “falta de demanda”, o problema é muito mais complexo e alarmante.


Como a turnê da artista mais carismática do Brasil, prometida com 30 shows em 30 estádios, para comemorar os 30 anos de carreira, é cancelada de repente com um simples post no Instagram? E o que pode ter prejudicado as 18 datas de uma artista que esteve no palco principal do Coachella, que lota por onde passa com seu sucesso “Numanice“? Sob os cuidados da mesma produtora, ambas as turnês prometiam apresentações grandiosas, em estádios, e viram uma festa iminente se transformar em polêmica.

Nesse artigo falaremos mais do caso Ivete Sangalo, afinal, estivemos na coletiva de imprensa que anunciou a turnê e no que seria o primeiro show, ou melhor, o Esquenta, que lotou o Maracanã em uma quarta-feira, 21 de dezembro. Mesmo assim, muito do que será levantado aqui reflete um cenário nacional, indo muito além de apenas as cantoras e o eventual destempero com a produtora em questão.

Primeiras datas da turnê A FESTA de Ivete Sangalo

Essa novela começa em outubro do último ano, em São Paulo, quando uma Ivete animada se reuniu em um palco com executivos da produtora 30e, do TikTok e da Globo e apresentou para a imprensa e um grupo seleto de fãs os planos para a comemoração especial dos seus 30 anos de carreira. Entre vários anúncios, o mais impactante: uma turnê com 30 shows, em 30 estádios de cidades brasileiras. Não suficiente, a promessa envolvia um cenário grandioso e que, nas palavras da coletiva, só seria comportado em estádios do país.

“A 30e trabalha atualmente com os maiores e melhores artistas do mundo. Isso porque encontramos um movimento recíproco no mercado: artistas querendo idealizar projetos ao lado da maior produtora e nós querendo estar com eles. Ivete Sangalo é, sem dúvida, uma das artistas mais completas do nosso país. E houve imediatamente uma conexão muito natural – estamos perfeitamente alinhados no propósito de entregar felicidade para as pessoas e ela também. Vamos investir muita tecnologia e inovação para tirar do papel a maior tour já vista no Brasil”, afirmou Pepeu Correa, CEO da 30e.

“Mas e o show do Maracanã?”

O show do Maracanã aconteceu, e se mostrou cheio para os espectadores da Rede Globo, que assistiram o espetáculo como parte do Especial de Fim de Ano da emissora. Em boxscore oficial divulgado, o público foi de cerca de 55 mil pagantes, mas logo começaram as dúvidas dos fãs. Isso porque, ao invés de aproveitar o hype gerado pela apresentação e pelo Natal com o anúncio das datas da turnê e a venda de ingressos para os shows, tais informações só aconteceram em fevereiro desse ano, véspera do carnaval, em que grande parte dos fãs e admiradores da artista já investiam em trios e shows privados da artista.

Além disso, a venda de ingressos começou por pacotes de ingressos vip — que embora englobassem regalias como acesso antecipado, merch exclusivo, open bar, passagem de som e pocket show acústico e intimista com a artista, sendo quase três shows em um —, gerou manchetes assustadoras sobre seu preço, que chegava à casa dos três mil reais. A abertura de ingressos, em fevereiro, envolvia as apresentações que começariam em julho deste ano e se estenderiam até abril de 2025, fazendo com que muitos fãs também não desenvolvessem “pressa” em garantir muitos dos ingressos com tamanha antecedência.

O show de Manaus, que abriria a tour, só teve seus ingressos disponibilizados semanas depois, e por outra plataforma: inicialmente sem os benefícios Picpay (que se estenderiam para todos os setores de todas as apresentações), sem informações da Eventim (que concentrava a venda de todas as outras 29 apresentações) e quase nenhuma divulgação da produtora.

“E quais eram os problemas com a produtora?”

Essa estratégia se mostrou ainda mais confusa quando alguns problemas começaram a surgir: não havia informações sobre valores de ingressos que não englobassem o vip, o mapa de setores dos shows ou ingressos mais acessíveis. O show de Manaus, que seria o primeiro, teve sua abertura de vendas quase um mês depois de todos os outros, e o show de Presidente Prudente teve suas vendas suspensas poucas horas depois da abertura, fazendo com que poucos fãs que conseguiram o ingresso ficassem confusos, e diversos outros sequer conseguissem efetuar a compra.

Para piorar a situação, logo veio a notícia de que a prefeitura da cidade não havia fornecido a liberação para produção do show, o que forçaria uma alteração no local do show. Em Barreiras, o estádio em que a apresentação aconteceria se encontra em reforma desde 2021, sem previsão de conclusão. Mesmo com o apontamento e questionamento dos fãs, a produtora não emitiu nenhum posicionamento.

O primeiro show, em Manaus, estava marcado para o dia primeiro de junho: em pouco mais de duas semanas. Embora Ivete tenha postado stories ensaiando, divulgando o show e chamando convidados especiais, só agora o hype para a turnê começava a ver um contorno mais sólido, com divulgação de ingressos a partir de 50 reais e a movimentação dos fãs para a primeira apresentação. Por isso, a surpresa com o cancelamento, onde a artista comunicava a “constatação de que a produtora responsável (…) não conseguiria garantir as condições necessárias para que as apresentações acontecessem como foram concebidas e (…) acordadas”. Em resposta, a produtora 30e afirmou que “por questões de demanda, a empresa propôs à artista e sua equipe uma readequação da estrutura”, e que fora surpreendida com o cancelamento da turnê.

“Mas tinha demanda?”

Em matéria publicada (e já editada) pela Billboard Brasil, falava-se de uma demanda com “resultados catastróficos”, em que Ivete teria vendido apenas 100 ingressos para um dos shows sem informar que se tratava da apresentação de Presidente Prudente, que não possuía aval da prefeitura e teve suas vendas suspensas no mesmo dia, como citado anteriormente. Mesmo assim, algumas apresentações como a de São Paulo, no Allianz Parque, já apresentavam setores esgotados.

No entanto, entre discussões de demanda x responsabilidades da produtora, diversos outros fatores (e artistas) entraram na conversa.

“Mas e a turnê do Jão?”

Também sob responsabilidade da produtora 30e e recentemente anunciada com faturamento de R$49 milhões de reais, a SUPERTURNÊ foi apontada como “case de sucesso” da produtora. No entanto, diversas reclamações despontaram nas redes sociais desde as apresentações que sucederam o espetáculo em São Paulo.

“Só existe uma coisa maior que construir um show. É deixar um marco na história do entretenimento e na vida das pessoas”, afirmou Guss Luveira, Vice-Presidente de Marketing da 30e.

Primeiras datas da turnê SUPERTURNÊ do Jão

Desde readequação do palco sem anúncio prévio a setores diferentes dos anunciados no momento de compra dos ingressos, passando por informações imprecisas que viviam sumindo e ressurgindo alteradas no site de vendas e mudanças no local, na capacidade e na data de algumas apresentações, a equipe do artista precisou se pronunciar, alegando também estar “esbarrando nos mesmos problemas” que os fãs e que estavam buscando iniciativas independentes (da produtora), comandadas pela própria equipe, para que a turnê continuasse “incrível e segura” para os fãs.

“E a Ludmilla?”

Com 18 apresentações marcadas para a turnê “Ludmilla In The House”, a cantora que arrasta multidões em suas apresentações “Numanice“, já havia tido o congelamento na venda de ingressos de metade das apresentações, há pouco mais de um mês, sem justificativas ou pronunciamentos oficiais. Mesmo com a polêmica após a apresentação do Coachella, as vendas (em menos apresentações) seguiram: quase em silêncio, mas continuaram no site até o anúncio da artista chegar quase ao mesmo tempo que o de Ivete. Segundo a produtora, “não houve nenhuma negociação anterior à decisão exclusiva da artista e seu comunicado”.

Primeiras datas da turnê LUDMILLA IN THE HOUSE da Ludmilla

“Mas como isso afeta o cenário nacional?”

No primeiro momento pós pandemia, shows e festivais pareciam ser a atividade preferida das pessoas que ficaram longe das multidões por tanto tempo. Recordes de público, apresentações esgotadas e até dificuldade em encontrar espaços disponíveis para tantas atrações foram sintomas aparentemente animadores para uma indústria que sofreu tanto no lockdown. Diversos novos festivais surgiam, conseguiam transmissões na TV, artistas de peso e renome e line-ups com novas propostas pareciam animar os fãs, até que… as experiências começaram a não encantar tanto.

Problemas com chuva, lama, locais insalubres e line-ups parecidos/pouco atrativos foram alguns dos elementos que pareceram azedar a receita. O dólar, o cachê dos artistas e da produção parecia não parar de subir, mas o poder de compra dos brasileiros… não. Experiências inéditas e de encher os olhos — como as propostas por Jão — pareceram ganhar mais espaço na escolha do público, afinal, são muitas alternativas para pouco dinheiro. Quem escolher?

É nesse momento que uma “stadium tour” como a primeira exibição da SUPERTURNÊ vista no Allianz Parque ganha vista: se pudermos vivenciar isso de perto, vamos investir nessa experiência inesquecível, certo? Em partes.

“O país não é só o sudeste”

Fato. Com escala continental, é injusto concentrar todo o entretenimento e grandes apresentações no eixo Rio-São Paulo, sem dúvidas. No entanto, as cidades mais acostumadas e “preparadas” para lidar com essas apresentações parece estar nessa região. O custo de deslocamento de equipamento, equipe, logística e serviços no Brasil é muito complexo. O dinheiro que se ganha no eixo sudestino — e em parte do Sul do país — não é o mesmo que rola em cidades do Norte, Nordeste ou Centro-Oeste, logo, o investimento dos fãs não consegue ser o mesmo. Se shows dentro do eixo começam a apresentar dificuldade em bilheteria, precisa-se pensar em como levar isso para outros estados, como conversar com outros públicos e principalmente, como alcançar os fãs sem perder de vista a realidade do consumidor.

“E aí, a culpa é de quem?”

Difícil apontar. Certamente é preciso pensar em toda logística e tentar cercar diversas realidades — e adversidades — antes de um anúncio de tamanho peso. Análises de risco, estudo de logística e comunicação com produtoras menores e locais precisam ganhar peso: não dá pra fazer anúncios, gerar expectativa, movimentar fãs e trabalhadores para se cancelar tudo no meio do caminho.

Claro que imprevistos acontecem, mas também é preciso separar a casualidade do amadorismo. Os problemas vivenciados em shows não são novidade: desde temperaturas absurdas sem distribuição de água, fãs eletrocutados em espaços de show, dificuldade de acesso a cancelamentos sem reembolso ou alteração respeitosa e outros “perrengues” nada chiques acontecem a todo momento. Nas redes sociais, todo mundo reclama, mas pouco parece mudar, efetivamente.

Comunicado oficial da produtora 30e sobre os cancelamentos

“Vai dar em alguma coisa?”

O certo seria esperar que as produtoras, investidores e executivos levassem essa experiência como um aprendizado a não ser repetido. Quem sustenta esse mercado, é claro, o público. Esse mesmo elemento parece ser sempre o mais desrespeitado ou “sucateado”, mas a conta parece (finalmente) começar a repercutir lá em cima. Se judicialmente pouco é feito, a resposta do público já é percebida, nem que seja no momento de “decisão”. Tudo bem, centenas de shows seguem rolando (e precisam mesmo), mas nem todas as bilheterias saem como esperado e, na hora de comprar, experiências e logística melhor pensadas saem à frente.

Mesmo o problema sendo muito mais profundo e com pouco cenário de melhora: pra onde vai o dinheiro das taxas? Não dá pra ser menos abusivo? O que a lei deixa ou não deixa? Ninguém aparece para responder essas perguntas. E os artistas independentes, produtoras locais e trabalhadores informais? Se uma produção de artistas como Ivete, Ludmilla e Jão apresenta tantos embaraços, quem está vendo (ou falando) dos menores? Quanta arte — e tempo, dinheiro e comprometimento — estão sendo sucateados em prol de acionistas e investidores que pouco estudam, mas muito prometem?

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