Crítica | Lindelof ultrapassa a HQ e enxerga a real mensagem de Watchmen

Lindelof ultrapassa a superfície dos quadros, enxergando a real mensagem da Graphic Novel e reproduzindo na melhor série do ano

Quando anunciaram que uma série de Watchmen estava sendo produzida, dava para contar nos dedos o número de pessoas que se empolgaram com a notícia. Esse mesmo número diminuiu quando revelaram que a trama se passaria nos dias de hoje e serviria de uma sequência espiritual da Graphic Novel de Alan Moore e Dave Gibbons. Todos que leram Watchmen sabem da extrema importância que o contexto político, com a tensão da guerra fria era para a história, tanto que o próprio filme do Zack Snyder se manteve fiel à isso. Felizmente, Damon Lindelof mostrou ser um verdadeiro entendedor da obra, muito mais que os fãs saudosistas.

Ao ler o artigo “The Case for Reparations”, do autor Ta-Nehis Coates (atual escritor dos quadrinhos do Pantera Negra), Lindelof descobriu sobre o massacre de Tulsa, em 1921, uma tragédia histórica onde vários supremacistas brancos, vestindo roupas da Klu Klux Klan invadiram, depredaram e assassinaram brutalmente os cidadãos negros de Tulsa, Oklahoma. Um evento histórico pouco conhecido pela maioria. Para Lindelof “Watchmen” sempre foi sobre a América, então ele pensou no ponto menos tradicional para ambientar a série e a primeira coisa que vemos após a abertura de “Watchmen” é o retrato desse massacre de quase um século atrás, ancorando a narrativa que iremos acompanhar nos próximos nove episódios.

Watchmen é a grande desconstrução/paródia do mito do super herói, levantando questionamentos e debates relevantes para sua época nesse pano de fundo e é isso que a série de Lindelof faz. Em um ano em que alcançamos o ápice que um filme de super herói pode alcançar enquanto entretenimento com “Vingadores: Ultimato” e “Coringa” conquistou relevância em festivais de renome, mesmo que a imagem que ele venda de “um retrato da nossa época” seja apenas uma faxada, “Watchmen” é o verdadeiro retrato.

Da mesma forma que a obra original, ela se desprende de todo glamour, estilo, fetiche e fantasia de poder que possa existir nessas pessoas fantasiadas e põe em cheque o caráter dos nerds que se dizem fã do “maior quadrinho de todos”. Se Rorscharch era um personagem querido pelos nerds, apesar de todos os esforços de Moore de deixar nítido o quão detestável ele era e condenáveis suas atitudes, aqui ele vira símbolo de supremacistas brancos, como a nova Klu Klux Klan, o que obviamente gerou a revolta dos “nerdinhos”. O nerd, aquele que deveria ter a empatia por um dia já ter sido humilhado por ser quem é, hoje é o grande bully opressor, que rejeita a abertura de diversidade no seu meio, porque quer permanecer preso a fidelidade e nostalgia daquilo que o fazia especial e agora ele não é mais único no seu mundinho e por isso se sente tão ofendido e rejeita com ódio as (acertadas) decisões da série.

Não é só Rorscharch que “volta”, mas como uma sequência em espírito do quadrinho, temos o retorno de personagens muito queridos, como a Espectral II que aqui assume o sobrenome do pai e vira Laurie Blake, a agente do FBI que investiga a trama que envolve a série, dando nova perspectiva e mais agência para uma das personagens mais subestimadas da história original; ao mesmo tempo temos a presença do excelente Jeremy Irons, como um rico excêntrico, que aparece quase como uma esquete divertidíssima dentro dos episódios, mas que cada vez mais tece novas ligações com a história principal e para quem conhece a HQ fica claro quem ele é desde o começo.

O retorno desses personagens em nada prejudica ou tira o foco da nossa protagonista, Angela Abar/Sister Night que tem o arco melhor desenvolvido, com as motivações e conflitos sendo apresentados de maneira não linear, porém coerente e com a conclusão que apesar de aberta, diz tudo sobre o que o Lindelof tinha a dizer com a série e fecha magistralmente caso a série permaneça apenas com uma temporada. Há também um segundo personagem, Looking Glass, que no começo parecia apenas uma versão em espírito do Rorscharch, porém que após protagonizar o quinto episódio, vemos um personagem com traumas e camadas muito maiores que a superfície.

Se há um tópico a se resumir do que Lindelof tinha a dizer com essa obra seria “legado”. O que houve de errado na nossa história, com nossos ancestrais que vale a pena hoje reavaliarmos tendo esse histórico para sermos pessoas melhores e também nos redimirmos por aqueles que sofreram simplesmente por serem diferentes de um padrão estabelecido. Através desse tema, Lindelof usa sua protagonista brilhantemente interpretada por Regina King e toma a coragem de voltar para a obra original de Watchmen e dar uma origem para um personagem clássico e envolto de mistérios, reavaliando as intenções desse personagem e criando um paralelo da gênese dos super heróis nos quadrinhos, o Superman, aqui em um retrato de desigualdade, vigilantismo e uma não intencional apropriação cultural, quando a “American Hero Story”, a série dentro da série – quase a versão de metalinguagem do que foi “Os Contos do Cargueiro Negro” para o original – conta a sua versão dessa história.

Em tempos em que voltamos a ver figuras reacionárias, intolerantes, preconceituosas e ignorantes como grandes líderes políticos, não havia momento mais apropriado para Watchmen voltar. A ideia desse tipo de pessoa com poderes que a deixam acima é temeroso e reproduzido em tela na cobiça do poder divino que se encontra na forma do ser que já deixou de se importar (ou será que não?). O que aconteceria se esse poder estivesse nas mãos de quem sabe por vivência ou história o que é sofrer, entende a responsabilidade desses poderes e se importa para fazer a diferença no futuro?

É o grande questionamento. Aprender sobre legado, desapegar da visão nostálgica e saudosista de um passado belo, porque ele não era e olhar a frente para evitar os mesmos erros novamente. As ideias, ousadia e execuções aqui é o que faz Watchmen o melhor e mais importante conteúdo de cultura pop de 2019 e conclui a década mais importante para os super heróis no mainstream com chave de ouro. Um belo fim, quero dizer, “nada chega ao fim”!

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Obs: Depois de todo final de episódio a HBO disponibilizava arquivos de textos que serviam como apêndices da narrativa de Watchmen. Vale muito a pena dar uma lida! (clica aqui)

Nota do autor: 98/100

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